Passageiros

Viagem de trem pela Toscana (2013)


Seus olhares se entrecruzam logo cedo na praça. Um esperava para entrar e o outro esperava chegar. Não sabiam que os lugares deles já estavam reservados. Juntos. Quando o de lá se dá conta que seu ônibus já tinha chegado e seria o mesmo do de cá, sobe apressado, atrasado, se dando conta de que ironia a vida empregaria se encontrasse De Cá ali, sozinho. E lá estava. "A vida encontra formas curiosas de pregar peças", pensou De Lá.  

Não demorou muito para que mãos deslizassem subindo e descendo a colina desértica e a nevada, quantas vezes fosse necessário para completar sua procissão, num ritmo sempre intenso e ordenado, Até que os vulcões nos topos das colinas entrassem em erupção expelindo espessas gotas de lava, escorrendo por seus relevos rumo à base e se espalhando pelos terrenos uma da outra. Coisa curiosa é a lava. Por onde passa, deixa seus rastros e se solidifica. Vira uma rocha. Certamente essa viagem ficaria sólida nas memórias daqueles dois passageiros. 

Quantas histórias, conhecimentos milenares, de Hieráclito a física quântica, que linda viagem os dois fizeram! Do Egito Antigo às grandes metrópoles da América do Sul, de passagem por mosteiros católicos e budistas, visitaram as páginas dos livros um do outro, voaram nas vassouras de bruxas reais e fictícias, foram dos reinos dos céus ao inferno, caminharam pelas ruas de Roma e restauraram obras de arte centenárias com delicadas pinceladas em azul cobalto e folhas de ouro. 

Suspiraram de fascínio pela beleza exuberante do imponente santuário, que se erigia vizinho ao rio. Para o azar de De Lá, o rio que nunca chegou a ser por ele avistado. Ficou apenas em sua imaginação a visão do rio mesmo. Mas embarcaram juntos na jornada espiritual e filosófica que busca responder quem somos enquanto humanos. Lembraram juntos da divindade que habita em cada ser humano, e se surpreenderam com as arquiteturas coloniais e góticas que exploraram pelo caminho em suas conversas. De Minas Gerais e de Salvador. História e arte caminham lado a lado. Teatro e livros, filmes e músicas. Como é abundante e esplêndida a produção humana!

A horas avançavam dentro daquele ônibus de viagem e os dois passageiros não deixaram de parar para admirar as paisagens amplas e verdes pelo caminho entre as montanhas, e ficaram boquiabertos com a vastidão azul do céu, que com o passar das horas ia se alaranjado sob suas cabeças, rasgado por raios solares amarelos e nuvens de algodão com texturas que mais pareciam as paredes de icebergs. Conforme avançavam rumo ao norte, a luz do sol ia se transmutando e as primeiras estrelas começavam a ensaiar sua aparição. 

Ao cair da noite, junto com a chegada da lua cheia, chegou também a lascívia. Controlar o desejo ardente de sentir os lábios um do outro, de passar os cabelos por entre os dedos, de entreabrir ligeiramente os olhos para admirar a beleza do rosto do outro de olhos fechados, apenas desfrutando das texturas dos lábios e boca do outro. Não havia medo, não havia pudor. Que entrassem os soldados da moral com suas espadas, invadindo os reinos e ilhas que haviam construído no Mundo Caixa, eles simplesmente não se importavam. As mãos percorriam colinas, montes e florestas, deslizavam ao longo das linhas sagradas, desenhadas primorosamente na carne, tal como rios encravados na floresta amazônica, artérias que confluem, tal como a identificação dos dois rapazes. 

Ao final da viagem, as horas haviam avançado tanto que nem se deram conta, pois encontraram conforto e uma paz tremenda no peito um do outro. Ali mesmo, entre as poltronas, os dois passageiros ajeitaram seu cantinho para pousar as cabeças cansadas e dormiram juntos, abraçados, segurando as mãos, que formavam algo parecido com uma linda pomba branca de asas abertas. 

A viagem chegou ao fim, e os dois desembarcaram no coração daquela grande metrópole. As vastas paisagens verdes e rios ficaram para trás, junto com velhas versões de si mesmos e crenças limitantes que subestimavam o poder da vida de nos surpreender a todo momento. A viagem foi inesquecível. E a lição que os passageiros extraíram de mais esse capítulo da vida foi que mesmo estando de passagem, ainda que as lindas paisagens e cenários passem diante dos olhos, é possível encontrar um lugar eterno. No aqui e agora. E então, deixe ir. Sempre haverá novos horizontes adiante.

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