O universo do olhar

Olhar da arte, de Ana Felix Garjan

Um olhar pode ser muito mais poderoso do que se pensa. O olhar genuíno, empático, disponível, é como uma pequena janela que conduz a vasto universo interior e único. A princípio pode parecer uma simples esfera oca e colorida. Mas ele recebe a luminosidade, e também meu olhar no dele, daquele rapaz, assim como o meu recebe e acolhe a luz que vem do outro.

A prática de ficar em círculo e olhar nos olhos de outro homem por certo tempo a princípio é extremamente desconfortável, pois quando olho frente a frente, também sou olhado. Como conseguiria sustentar ser penetrado tão profundamente assim por um estranho? Ele vai ter acesso aquilo de mais íntimo que guardo aqui dentro! Vai acessar todas as minhas fraquezas, minhas inseguranças infantis não trabalhadas - ou ainda em processo de autodescoberta - a vergonha que guardo como se fosse uma meia velha e furada no fundo de uma gaveta, e que não permito que os outros vejam seu furo, sempre enfiando-lhe dentro do meu tênis perfeitamente asseado. Mas aquela meia jamais poderia ser jogada fora. Ela foi costurada à mão por mim. Cada fio, cada ponto foi dado através de agulhadas profundas e dolorosas, junto com as lágrimas que rolavam pelos meus olhos a cada pontada de decepção, humilhação e frustração que era dada nessa costura que levou tantos anos. 

Mas percebi que o outro não se importava em demonstrar suas fraquezas, suas inseguranças nem sua vergonha. Seu olhar era sereno, seus olhos eram claros como a superfície das águas caribenhas. Eu poderia me afogar ali dentro se não tomasse o devido cuidado de entender que não se tratava de um mergulho em seu olhar. Era uma ponte. O pesar dele era tamanho que escoava por seus olhos em forma de pequenas lágrimas cintilantes que começaram a escorrer. Primeiro em forma de pequenos cristais que deixavam seus lindos olhos claros brilhantes como um tapete de estrelas cobrindo a vastidão do céu nas noites mais escuras do ano. Após algum tempo, as pequenas estrelas foram derretendo e se transformando em córregos transparentes que desaguavam pelos cantos de seus olhos e percorriam seu caminho em direção às bochechas. Sua dor estava tentando sair daquelas águas cristalinas em seus olhos azulados e não conseguiria fazê-lo de forma mais graciosa e silenciosa sem que encontrasse um canal, uma mão amigável repousando em seu peito e meus olhos genuinamente abertos para expor todo meu universo particular a ele. Eu era a ponte que talvez o rapaz precisasse naquele momento para sentir que atravessar era preciso.

Foi aí, então, que pude presenciar uma estrondosa libertação. A represa que segurava sua dor havia rompido todas as barreiras morais que impedem que um homem chore na frente de outro. Mas não era através do som, das palavras, nem mesmo do toque. Era o olhar. Todos os sentimentos que comprimiam seu coração lentamente subiram seu caminho até os olhos e por lá escoaram, lavando o que viesse pela frente sem nada para inibi-los. De repente, pude ouvir dentro do meu coração e da minha mente sua voz: “Eu estou me permitindo desaguar na sua frente”. Ao que respondi também através de nossa conexão energética: “Muito obrigado por confiar em mim. Você não está só. Eu estou aqui com você”. 

Pude sentir, com surpreendente intensidade, a potência de sua dor. Era avassaladora. Mas ao mesmo tempo serena. Assim como o fluxo de um rio, que de sua margem é sereno, mas que ao acessar seu interior, te arrasta para dentro de si. E realmente estive dentro. Por alguns minutos. 

E então a interação acabou. A viagem estava encerrada. A ponte foi recolhida e as lágrimas naturalmente secaram. Saí de seu campo de visão e perdi de vista seus olhos cristalinos. Voltei ao meu próprio universo interior, tal como um viajante solitário que retorna a seu lar por uma longa estrada de terra. Retornei com a sensação de que o espaço de um ou dois palmos entre nossos olhos havia sido a maior distância que um homem pode percorrer em sua vida inteira. E foi uma caminhada para se lembrar para sempre.  


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