Um visitante que nunca se vai

 

Um visitante que nunca se vai

"Os visitantes inesperados", de Ilya Yefimovich Repin (1888).


Por que você insiste em ficar? O que mais preciso fazer para mandá-lo embora de vez? Por que não se vai e me deixa em paz? 

Prometo que nossas memórias ficarão guardadas a salvo para sempre comigo, e eu poderia colocá-las junto com os mapas, panfletos, chaveiros, pedrinhas e bilhetes de passagens que guardo numa caixinha de veludo no fundo do armário. São uma singela coletânea de todos os momentos e lugares especiais por onde estive. Pegadas e rastros que deixei pelo mundo. 

Mas me dou conta de que não posso guardá-lo junto com esses objetos. Você é forte demais, intenso demais, vivo demais para ser esquecido por dias, semanas e meses até que, por fim, eu lembre de tirá-lo do armário para mostrar a um amigo querido durante uma conversa casual sobre viagens. Diferente de minha preciosa caixinha, que abro e me surpreendo com os pequenos tesouros que havia esquecido que um dia os coloquei ali, você me lembra todos os dias que esteve aqui. Insiste em levantar a tampa da caixa e caminhar sorrateiramente para fora, sem permissão, com intromissão, e apenas uma intenção: ficar à mostra. 

Aparece nos meus sonhos, me lembra de nossos beijos, nossos carinhos, nosso sexo e nossas trocas de conhecimento. Se ao menos eu tivesse aberto o livro do desapego antes… 

Noites perturbadoras que você insiste em se mostrar, usando diferentes vestimentas, diferentes fantasias e cada vez mais realistas. Ora você é um abraço, que me envolve e me dá contorno - já não sinto mais o externo! -, ora você é uma pedra de gelo, que, embora esteja fora do congelador, fica cada vez mais dura e gelada conforme seu enredo onírico avança em minha mente noite adentro. 

Qual a lição? Qual a missão? Qual é o ponto em ficar aqui e nunca ia embora? Talvez não tenha terminado de me fazer ver o que preciso aprender. Ou quiçá esteja me mostrando que não posso guardar todas as lembranças, pois algumas têm vida própria e precisam de um direcionamento.

Um visitante inesperado, que nunca se vai, precisa ser instruído. Preciso dizer que chegou sua hora, chamar seu táxi e ajudar a carregar suas malas até o corredor. A casa nunca foi sua, apenas foi sua vez de usufruí-la. Pois bem, os dias passam e às vezes desisto de negociar com você e te deixo dormir mais uma noite no sofá. Na manhã seguinte, o esforço se repete. Às vezes você desce de elevador até as profundezas do meu inconsciente. Mas no fundo há uma mola que te impulsiona de volta para cá. 

O que mais falta fazer? 

Se não posso te botar para fora, nem permitir que continue se espalhando aqui dentro, talvez o jeito seja me perguntar o que ainda tem aqui que te faz querer ficar. Será um resíduo, um aroma, um ponto de luz? Ou talvez o dono da casa esteja deixando a porta entreaberta. 

"Entre, está aberta."  


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